As suplicantes

leitura encenada

photo(12).jpg

©Carlos Fernandes | Teatro Viriato

 
 

Nota de Intenções  | Texto para uma folha de sala

- Sara?
- Sim?
- Queria convidar-te para dirigires uma leitura encenada, em Viseu, com um texto à tua escolha (...) carta branca (...) pensar este ciclo com mulheres criadoras, autoras, encenadoras… (a conversa continuou, eu deixei de ouvir.) ...convidar-te foi uma espécie de instinto… (só apanhava fragmentos) ...refletir sobre algo que queiras fazer… (só ouvia o que me interessava, que estranho!)

...não posso precisar o que aconteceu a seguir. Primeiro porque estava numa repartição de finanças, há várias horas, à espera que a minha senha fosse chamada ainda nesse dia. E depois porque o texto “As Suplicantes “ de Ésquilo, não me saía da cabeça desde o momento em que se iniciou a chamada. E não me lembro de ouvir datas nem questões práticas, porque o meu pensamento tinha indubitavelmente viajado para 463 a.C. e todo aquele texto era urgente em mim. 

Ali estou eu, numa instituição pública, sozinha, mulher, no espaço da polis, a exercer os meus direitos e deveres como cidadã, a participar nas actividades políticas do meu país, a ter problemas com a devolução do meu IRS, a tratar das contribuições do dinheiro que ganhei com o meu trabalho, e a ser convidada para dirigir um projecto. Convidada para fazer teatro. Convidada para dirigir um projecto de teatro! E, de repente, tudo isto fez sentido. 

Que texto era este que não me saía da cabeça? Que texto é este que tem mais séculos do que os dedos do meu corpo e que foi escrito num contexto tão específico, às vezes tão longínquo, outras vezes tão próximo. Pensar que a Grécia Antiga é ainda hoje a matriz da sociedade ocidental, onde vivemos e de quem somos fruto, pensar que nessa época (e ainda em muitos países vizinhos contemporâneos), as mulheres não eram consideradas cidadãs, não representavam no teatro, não escreviam, não tinham direitos, não podiam ter participação cívica, política, artística. E pensar esta herança podre - (porque os antigos não faziam sempre tudo bem), em que o espaço da escrita foi sempre destinado aos homens, em que o pensamento e o acesso à política foi sempre privilégio do género masculino, em que milhares de textos, de contos, de mitos, de tradição oral - continua a alimentar estereótipos sobre a condição da mulher, e que isto se perpetuou (perpetua!) por tantos anos, séculos, mais de um milénio muitas vezes. 

Leio “As Suplicantes”, de Ésquilo, como o primeiro texto com reivindicações feministas que conheço. Talvez não tenha sido o primeiro, talvez seja altamente duvidável que seja realmente um texto feminista, mas é assim que o leio, porque é assim que sou.  

Se não vejamos: 

É um texto sobre cinquenta mulheres que são prometidas a cinquenta primos e que fogem porque querem escolher com quem vão casar, querem escolher com quem vão perder a virgindade. Aquilo a que hoje chamamos “consentimento”, essa palavra tão importante que podia ser capa da revista Times. 

É um texto sobre cinquenta mulheres que atravessam o Mediterrâneo, num barco, e desembarcam na Grécia, onde pedem asilo político. Quão familiar é esta narrativa, não? 

É um texto sobre cinquenta mulheres que querem ter poder no seu destino, que procuram a emancipação, e quando parece que estão a salvo, voltam a ver o seu futuro nas mãos de um rei e seus cidadãos (homens, claro), tal como o destino dos refugiados de guerra fica nas mãos do Parlamento Europeu (em que apenas um terço dos assentos é ocupado por mulheres.)

É um texto sobre cinquenta mulheres, escrito por um homem, que abre caminho para eu estar hoje, agora, aqui, convosco. 

Quando escolhemos pegar nos clássicos, sobretudo se forem aqueles clássicos mesmo clássicos, perguntam-nos frequentemente: “é porque os clássicos são actuais, não é?” Mas eu não defendo essa tese de que tudo o que é antigo é que era bom e a nova geração vai acabar com o mundo, e não lê, e não se interessa, e não… porque se acreditasse nisso não acreditava que posso mudar o mundo, e então não teria vontade de sair da cama, e a solução era pensar na minha morte. Mas eu faço teatro porque tenho uma ideia de futuro.

Escolho o clássico porque ele actua em mim. 

Escolho este clássico, este e não outro, este e não um qualquer, porque se apodera de mim, porque me convoca para a discussão, porque quando a ideia de ler publicamente este texto me faz desistir das filas das finanças, onde estava há várias horas, e ver adiada a devolução do meu IRS por mais uns meses, é porque tem que ser feito, discutido, partilhado, resgatado. Hoje. Agora. Aqui. Convosco. 

Sara Barros Leitão
Viseu, 6 de Março de 2019

 
 

APRESENTAÇÕES

6 de Março 2019
Sala de ensaio, Teatro Viriato

FICHA ARTÍSTICA

Texto - Ésquilo
Tradução - Urbano Tavares Rodrigues
Adaptação para cena e encenação - Sara Barros Leitão
Interpretação -
Apoio técnico - Equipa Teatro Viriato

Fotografias de cena

© Carlos Fernandes | Teatro Viriato